Clécio Lucena – Mastologista e Professor do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da UFMG
Por trás da triste perda de milhões de vidas vítimas da covid-19 e dos efeitos econômicos responsáveis por levar milhares de pessoas à pobreza extrema, a pandemia do Coronavírus conflui ainda para uma série de consequências perturbadoras, porém menos evidentes.
Embora essa lista seja imensa, destaco especificamente sobre como os indivíduos transgêneros, portadores da chamada Disforia de Gênero deixaram de receber, desde o início de 2020, o atendimento e o acolhimento necessários.
O transtorno envolve uma complexidade muito grande de fatores integrados a esses indivíduos, desde fatores genéticos, hormonais, os contextos social, psíquico, cognitivo e até a própria relação que cada um vivencia com seus familiares, colegas de trabalho, amigos e cônjuges.
É importante esclarecer para quem não é familiarizado com o termo: Disforia de Gênero refere-se ao quadro de sofrimento – ansiedade, estresse, angústia, depressão e irritabilidade – causado pela dissociação ou incongruência entre o sexo biológico (sexo do nascimento) e a autopercepção de cada pessoa sobre seu próprio gênero.
A nova resolução normativa 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina – CFM define como incongruência a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo de nascimento, incluindo nesse grupo uma grande diversidade de formas de percepção da questão sexual: transexuais, travestis e outras expressões identitárias.
Talvez o grande ponto é que, nos pacientes com diagnóstico de Disforia de Gênero, o desejo de pertencer ao sexo oposto, diverso do sexo biológico, não é uma escolha e, por isso, eles buscam formas de minimizar esse sofrimento.
Todo o processo repercute em níveis de transtorno tão altos, que não é incomum encontrarmos pacientes em condições de automutilação e, até mesmo, casos de autoextermínio.
O fato é que o cenário vivenciado atualmente interrompeu todo o processo de atendimento desses pacientes, incluindo o acompanhamento psicológico, a terapia hormonal ou hormonização cruzada, e todas as formas de redesignação sexual através da realização de cirurgias genitais e mamárias como retirada das mamas, inclusão dos implantes de silicone (próteses mamárias) etc. necessárias para cessar ou amenizar o sentimento de incongruência.
Mesmo antes da pandemia, observava-se uma subcapacidade de atendimento diante do aumento de demanda. No contexto do SUS, salvo alguma autorização mais recente, apenas cinco serviços são habilitados a oferecer programas integrais de abordagem a indivíduos portadores de Disforia de Gênero: no Rio Grande do Sul, em São Paulo, Pernambuco, em Goiás e no Rio de Janeiro. Fora dessas instituições, esses pacientes precisam buscar o sistema privado, o que sabemos não ser possível para muitas pessoas, além de fragmentar todo o atendimento.
Em Belo Horizonte, esperamos que em algum momento seja possível ter no Hospital das Clínicas da UFMG, ou em alguma outra instituição do sistema público, um Centro Capacitado para fazer a abordagem integral dos indivíduos transgêneros, nos moldes do que pressupõe a Resolução do CFM 1.482/1997, atualizada no final de 2019.
O documento define a abordagem dos indivíduos transexuais por meio de uma equipe multidisciplinar, incluindo especialistas em psiquiatra, psicologia, assistência social, endocrinologia e cirurgiões.
Aqui, entram vários tipos de cirurgiões: mastologistas, cirurgiões plásticos, ginecologistas, urologistas, a depender da estratégia e da forma de abordagem cirúrgica que cada paciente necessita.
As últimas informações apresentadas pelo Ministério da Saúde, em 2017, mostram um aumento substancial na ordem de 32% no número de intervenções cirúrgicas de readequação sexual nesses pacientes.
Seguramente, teríamos um aumento mais expressivo no atendimento desses indivíduos, se não considerássemos a situação catastrófica da pandemia. De toda forma, esse acesso precisa ser ampliado e formatado com várias unidades capacitadas para abordagem integral, não apenas aqui em Belo Horizonte, mas em várias outras localidades no nosso país.